sábado, 30 de outubro de 2010

O filho possível


Na sequência pode-se ler a reportagem O FILHO POSSÍVEL, sensivelmente escrita por Eliane Brum, quase na íntegra, pois suprimi alguns textos e todas as imagens. Creio que você, assim como eu, tem suas próprias imagens, quer sejam mentais, quer sejam impressas. Por isto fiquei apenas com os textos, profundos, delicados e esclarecedores sobre experências vividas em uma UTIN. A reportagem completa, pode ser acessada através do link abaixo.

Reportagem de Eliane Brum (texto) e Marcelo Min (fotos) para a Revista Época

"Acompanhamos uma UTI neonatal que trabalha com cuidados paliativos. Nela, a medicina faz diferença mesmo quando não há cura.

Amor de mãe

Cristiane Nascimento e seu filho Lucas, na UTI da Divisão de Neonatologia do Caism, na Unicamp. Ela sussurra palavras de amor, e o coração dele acelera.
(...)  Lucas tem câncer. O tumor no cérebro nasceu com ele. Na cirurgia, não foi possível arrancá-lo por completo. No dia (...) 22 de janeiro, Lucas completava 2 meses. (...) Essa não a história com que Cristiane sonhou. Mas a história possível.
Ao dar à luz, mulheres como ela precisam se desprender do filho sonhado para alcançar o filho real. Com a ajuda da equipe de cuidados paliativos, Cristiane aprende a valorizar cada detalhe da vida de seu bebê, não importa o tamanho que ela tenha. Como neste momento, ao aconchegar o filho no colo e sussurrar que o ama. O aparelho da UTI mostra que, mesmo em coma, ao ouvir a voz da mãe o coração do filho bate mais rápido.
Lucas está numa UTI diferente. A Divisão de Neonatologia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), da Universidade de Campinas (Unicamp), pratica os cuidados paliativos no tratamento de bebês malformados ou com doenças graves. Todos os esforços são empreendidos para curar. Quando não é possível, a equipe suspende tratamentos invasivos e dolorosos – e amplia os cuidados com a família e com o luto. Cada bebê tem uma história. E é preciso cuidar bem dela. (...)
(...) A cada ano, 45 mil brasileiras perdem seus filhos antes que eles completem 365 dias de vida. A essas mulheres, os profissionais de saúde costumam afirmar, com a força das verdades absolutas: “Você é jovem, vai ter outro filho”. Ou: “Você nem teve tempo de se apegar, vai superar”. Parentes e amigos repetem a toda hora essas frases. Omitem- se de escutar a dor. E calam o luto de quem precisa vivê-lo para seguir adiante.
A morte nos assombra a todos. Mas a perda de um bebê é o avesso da lógica. Ninguém espera que quem acabou de nascer possa morrer. Um filho não é apenas uma combinação única dos genes dos pais, mas a soma de seus melhores desejos de continuidade. Isso faz com que essa morte seja a menos aceita – e a mais silenciada.
Até 2001, a neonatologia do Caism era mais uma das unidades do país a acreditar que a função de profissionais de saúde limitava-se a curar doenças. Centro de referência para 42 municípios paulistas, ele acolhe os casos mais graves de malformação fetal e bebês prematuros. A morte, portanto, não é uma estrangeira em seus corredores. Mas só por descuido da recepcionista os médicos encontravam-se com os pais após a perda dos filhos. Era no setor de óbito que a família recebia a notícia, da boca de desconhecidos.
Quem mudou essa prática e transformou a unidade em algo novo no Brasil foi um bebê. Ele parava de respirar dezenas de vezes por dia. A cada uma, era preciso reanimá-lo. A equipe passou a conviver com a iminência de sua morte – e com o medo do plantonista de não conseguir revivê-lo. Não havia cura. Mas ninguém queria que ele morresse em seus braços.
Como cuidar desse bebê? Deveriam parar de reanimá-lo ou continuar prolongando seu sofrimento? A quem caberia decidir? E como conversar com os pais? As perguntas infiltraram-se no cotidiano da enfermaria. Tanto que exigiram respostas que ninguém ali tinha, apesar dos muitos diplomas e das décadas de experiência.
Sem poder conviver com tantos pontos de interrogação, a equipe buscou ajuda. Convidou a psicóloga Elisa Perina para dar uma palestra sobre a morte. Elisa trabalha há quase 30 anos no Centro Infantil Boldrini, em Campinas, uma referência no tratamento de crianças e adolescentes com câncer. É uma das precursoras da prática dos cuidados paliativos no Brasil.
Com Elisa, a equipe descobriu que a questão era mais difícil do que poderiam supor. Os profissionais não poderiam lidar com a morte de um bebê se antes não lidassem com a perspectiva da própria morte. “Antes de abrir espaço externo, é preciso abrir o interno”, diz Elisa. Foi um longo caminho até a equipe estar preparada para cuidar de bebês como Lucas para além da perspectiva da cura.

A conversa de Cristiane

Cristiane torce as mãos, nervosa. Na sala a esperam duas pediatras, psicóloga e assistente social. Estão ali para explicar a Cristiane que o câncer de Lucas não tem cura – e que a família pode contar com elas para garantir conforto. Não apenas emocional, mas prático.
A primeira preocupação da equipe é iluminar as dúvidas da mãe, para que a dor não seja agravada por incertezas de diagnóstico. É importante que a família esteja segura de que todos os recursos da medicina foram usados na tentativa de curar o bebê. A certeza de ter feito tudo o que era possível é essencial para a saúde dessa família no presente – e no futuro.
Cristiane faz muitas perguntas. Todas são respondidas com informação – e com afeto. “Se não tiver jeito de curar, eu e meu marido preferíamos que nosso bebê não fizesse outras cirurgias”, diz ela. E engole soluços.
Ela conta que não consegue cuidar de seu filho mais velho. Que tem poupado os familiares das informações mais duras e sente que pode implodir de dor. Que o marido tem vindo pouco ao hospital porque estava desempregado e só tinha conseguido trabalho fazia duas semanas. Que a vida está muito, muito difícil.
A pediatra Jussara de Lima e Souza, coordenadora do grupo, diz: “Você precisa deixar os outros cuidarem de você. Você está cuidando de todo mundo, e eles não sabem quanto você está sofrendo. Sem saber, não podem ajudar. Nós podemos cuidar para que o Lucas não sinta dor, mas não podemos fazer com que sobreviva. O que podemos é ajudar você e sua família a passar por isso”.
A conversa dura duas horas. Cristiane decide levar o filho mais velho ao hospital, para que ele possa conhecer o bebê e entender aonde a mãe vai todos os dias. Até então, o menino pensa que a mãe o abandona para se divertir com um irmão desconhecido. A assistente social coloca-se à disposição para conversar com o patrão do marido e encontrar uma forma de liberá-lo por algumas horas. A mãe pode passar a noite num dos alojamentos quando quiser ficar mais com Lucas. Cristiane é estimulada a pensar sobre tudo o que lhe daria conforto. Médicos, enfermeiras, assistentes sociais e psicóloga podem ser contatados a qualquer momento.
É uma conversa entre uma equipe de saúde e a mãe de um bebê com câncer. É uma conversa entre pessoas dispostas a alcançar a dor do outro. A informação mais importante para Cristiane é que ela não está sozinha. “Você está cuidando do Lucas da melhor maneira possível”, diz a assistente social Elaine Salcedo. “Vocês têm uma história, que vai ficar com você, seja o que for que aconteça.”
Quando a conversa termina, Cristiane decide almoçar. Nos últimos dias, só comia quando passava mal. A equipe mostra a ela que precisa comer para ser capaz de cuidar de Lucas. E que é importante – e não errado – cuidar de si mesma. (...)

Duas histórias de vida


Janaína Bueno de Moraes perdeu suas gêmeas, ambas chamadas Vitória. Ela afirma só ter conseguido superar o luto e seguir em frente pela forma como foi tratada no hospital. Hoje, Janaína é mãe de Gabriel.
No Caism, os pais podem ficar o tempo que quiserem com seus bebês, dia e noite. Aprendem a cuidar deles, a ministrar os medicamentos. O toque e a voz são estimulados. Os bebês ouvem, sentem, às vezes melhoram com esse contato tão próximo. “É importante que as mães possam se sentir mães – e não visitas. Os bebês estão doentes, mas não são nossos. São dos pais, da família”, diz Jussara. “Quando têm pouca chance de cura, não há nenhuma razão nem para procedimentos invasivos e dolorosos nem para não permitir que a família fique com eles no colo pelo tempo que quiser. Permitimos que os irmãos visitem, para que possam entender o que está acontecendo e também construir suas lembranças. É uma história de vida, não importa o tamanho que essa vida tenha. Nosso trabalho é cuidar bem dessa história. Da vida.”
Em 2004, Janaína Bueno de Moraes teve duas Vitórias. Perdeu ambas. Hoje, aos 27 anos, ela tem um bebê de 1 ano, Gabriel. “Só consegui seguir adiante por causa do cuidado que tiveram comigo”, diz. “Foi uma experiência muito dolorosa. Ao mesmo tempo, eu me sentia amparada, respeitada, ouvida. Pude cuidar das minhas gêmeas. E ensinar outras mães a cuidar de seus filhos.”
Júlia Vitória e Jaíne Vitória nasceram com 25 semanas de gestação. Janaína já tinha perdido, ainda na gravidez, outros dois bebês. Na cesariana, o médico disse: “A chance de gêmeas nascerem vivas com esse tempo de gestação é de uma em 1 milhão”. A primeira Vitória, com 580 gramas, morreu com 29 dias. A segunda, com 640 gramas, resistiu até os 8 meses.
Janaína viveu as mortes das gêmeas em mundos distintos. Testemunhou as duas formas de tratar a perda de um bebê no sistema de saúde. A primeira Vitória morreu na Unicamp. A segunda permaneceu lá por oito meses, mas morreu seis dias depois de ser transferida para outro hospital de referência. Janaína viveu dois lutos, duas lembranças. Esta é a primeira delas:
– Quando cheguei à UTI, o médico disse que minha filha estava morrendo. Outra médica perguntou se eu queria pegá-la. No meu colo, a Júlia abriu aquele olho pequeno e me olhou. Eu disse que ela fosse em paz, que tudo o que tinha de fazer na vida da mamãe e do papai já tinha feito. Fiquei segurando a mão dela. Depois, desci para um culto. Quando voltei, ela estava morta. Eles puseram roupinha nela, a botaram num bercinho e a deixaram numa sala, para que a gente pudesse se despedir. Parecia que estava dormindo. Precisei contar para a Jaíne que sua irmã tinha morrido, porque ela começou a ter uma parada cardíaca atrás da outra. Eu disse: “Você está sentindo falta de sua irmãzinha, né, fia? Sabe o que é? Lá no céu precisavam de mais uma florzinha. Jesus veio buscar a Júlia porque lá não tinha uma tão bonita. Só deixou você porque, se levasse as duas, a mamãe ficaria muito triste”.
A segunda lembrança de Janaína é de quase oito meses mais tarde:
– A Jaíne foi transferida para um hospital de Ribeirão Preto, mais perto da minha cidade. Ela não enxergava, mas, quando ouvia a minha voz, mexia a mãozinha. Acho que não tinha morrido ainda porque eu não a entregava. Eu falava assim: “Você vai ficar bem, você é a Vitória da mamãe”. Quando chegamos ao outro hospital, não me deixaram cuidar dela. Eu tinha sido treinada para cuidar dela. Então fui explicando os medicamentos para a médica, os procedimentos todos. Mas só me deixavam ficar uma hora com a minha filha. O resto do dia eu passava lá fora, angustiada. Só nos chamaram quando ela estava morrendo. Botei a mão sobre ela e entreguei minha filha a Deus, disse que ela fosse em paz. Quando acabei, uma lágrima rolou do olho dela. Eu disse a meu marido: “Você está vendo, ela estava se segurando aqui por nossa causa”. Então nos mandaram sair. Quinze minutos depois, ela morreu. Quando meu marido foi buscar nossa filha, ela estava no necrotério. Nua, com etiqueta e código de barras. Como se fosse mercadoria. Meu marido tirou a camiseta do corpo e enrolou a filha nela.
Quando foi buscar o atestado de óbito, Janaína exigiu falar com o responsável.
– Para mim, não adianta mais. Mas vocês precisam ter cuidado para lidar com a morte. Minha filha estava nua, no necrotério, com etiqueta e código de barras.
O médico respondeu:
– Calma, mãe, você é jovem, vai ter outro filho.
– Não é essa a questão – disse ela. – A questão é que eu tenho sentimentos. Minha outra filha também morreu. Mas, na Unicamp, puseram roupinha nela, botaram num bercinho. Nós nos despedimos.
– Mas lá é um hospital escola…
– É escola para que vocês possam aprender. Como você acha que vou me lembrar de minhas filhas? Da que morreu lá, eu me lembro dela dormindo, em meu colo. Da que morreu aqui, lembro com uma etiqueta e um código de barras. Como vou viver com essa imagem?".

Os pais nascem antes

A cada bebê que nasce, nasce também uma família. Poucos percebem, porém, que homens e mulheres se tornam pais e mães bem antes do nascimento do filho. “É preciso entender o que significa a perda de um bebê para ser capaz de cuidar da família. Aquela criança não viveu apenas aquelas horas, dias ou meses”, diz a psicóloga Elisa. “Para os pais, no momento em que conceberam a possibilidade de um filho, ele passou a existir. Já contém nele a continuidade de um projeto de vida. É uma história mais longa que parece. Quando é rompida por uma morte, a perda é enorme.”
Ao compreender a dimensão dessa perda, o grupo de cuidados paliativos criou um espaço para a despedida. Ali, a família começa a viver seu luto com privacidade. Só depois o corpo segue para o necrotério.
A equipe procura mostrar às mães e aos pais que eles estão construindo uma história com seus bebês. Com momentos de dor e de alegria, como são todas as vidas, curtas ou longas. As mães são estimuladas a prestar atenção também a outras dimensões do cotidiano. Ir ao cinema, jantar com o marido, arrumar o cabelo, passear com os outros filhos. A perda é elaborada para transformar-se naquilo que é: numa história, parte da travessia daquela família.
Aos 34 anos, Luciana Roberto recorda o dia mais feliz de sua vida: “Foi quando eu trouxe o Lucas para casa pela primeira vez”. O menino era fruto de sua quinta gestação. Nas outras quatro, perdera os bebês na gravidez. “Eu queria muito ser mãe”, diz ela. Ao saber que o bebê nasceria com o intestino exposto e que ela entraria em coma no parto, desejou-o mesmo assim. “Pelo menos, eu saberia o que é ser mãe.”
Luciana viveu mais de um ano no hospital. Lucas passou por dez cirurgias. Um dia a equipe fez uma surpresa. Pagou uma enfermeira para que ela pudesse passar o Dia das Mães em casa, em Itu, no Estado de São Paulo. “Era um dia tão ensolarado, eu pude mostrar tudo a ele: ‘Olha, filho, este é o céu. Olha, filho, isto é uma árvore. Olha, filho, estamos chegando a Itu’”, diz ela. “Era a primeira vez que meu filho sentia o sol. Mostrei a ele o bairro onde nasci, a cidade que amo. Minha família nos esperava. Foi muito grande isso para mim.”
Lucas morreu nos braços de Luciana, com 1 ano e 4 meses. Na pequena casa onde vive com a filha de 3 anos, nascida depois do luto, ela guarda sua história com o filho em fotografias. “Olha, aqui fizeram uma festinha para ele no hospital, com bexiga e tudo”, diz. “Ele colocou um cateter, muito difícil de conseguir, que vinha lá dos Estados Unidos. Pôde então tomar nutrição parenteral. Todo mundo comemorou.”
A trajetória narrada por Luciana não é uma vida em suspenso, à espera da cura ou do fim. É um dia de cada vez, uma história em movimento. É importante que a vida de Lucas tenha se transformado em lembranças, guardadas num álbum de fotos, para que sua mãe possa viver no presente.

Conflitos no limite da vida

Não se veem muitos pais entre os berços aquecidos. As mães estão por toda parte. Com as mais variadas justificativas, a maioria dos homens deixa suas mulheres lidar com o cotidiano da UTI. Eles assumem – por pressão social, mas também por vontade própria – o lugar tradicional do homem, ao cuidar da vida prática e da vida pública. Deixam a mulher lidar com a vida privada, não mais no lar, mas no hospital.
Às vezes, a dor da mãe é tão avassaladora que não deixa espaço para o sofrimento do pai. É como se, por ter gerado o filho, a mulher tivesse um lugar maior – e fosse natural que sofresse mais. Aos pais, restaria calar uma dor supostamente menor. As mães procuram ajuda para seus dilemas, a maioria dos pais não. Se o casal consegue conversar sobre suas dificuldades e amparar-se mutuamente, tem mais chance de superar o sofrimento. Mas a doença de um bebê, seguida ou não de morte, às vezes pode levar ao fim do casamento. “Se o casal já estava fragilizado antes da doença e da perda, há um risco grande de separação”, diz a psicóloga Elisa. “Se já não dava conta das dificuldades cotidianas, na hora de uma adversidade tão profunda, o laço pode se desfazer.”
Ao falar de seus sentimentos, algumas mulheres afirmam-se não mais como um ser humano inteiro, com várias dimensões na vida, mas reduzidas a “um útero defeituoso”. “Eu sentia que havia falhado como mulher. Nem conseguia mais transar com meu marido”, contou uma mãe. “Também sentia vergonha de minhas amigas que tinham filhos saudáveis. Me sentia menor.”
Na outra ponta, alguns pais tomaram a iniciativa da separação depois da doença do bebê. Em geral, com a justificativa de ter se apaixonado por outra mulher. Uma que pudesse lhes dar filhos saudáveis. Foi o que fez o marido da mulher citada no parágrafo anterior. Além de assumir uma suposta culpa pela morte do filho, ela achou que, ao deixá-la, o marido teria razão. Afinal, ela não era uma “mulher completa”.
Enquanto algumas mulheres assumem a “responsabilidade” pelos problemas congênitos do bebê ou da gestação, há homens que parecem se eximir de qualquer participação na existência de um bebê que, em vez de alegria, causa dor. Para alguns, gerar um bebê malformado põe a masculinidade em dúvida. A saída óbvia, já que lhes faltam recursos psíquicos para resolver a questão de forma mais sofisticada, é abandonar a mulher que lhes faz lembrar o assunto. E provar, por meio de outra, que são potentes.
Uma das mães descobriu no enterro do filho que, enquanto estava no hospital, o companheiro teve um caso. Outra soube, por meio de um telefonema anônimo, que o marido mantinha uma relação fora do casamento – e que a amante estava grávida. Ela o perdoou. Mais tarde, diria: “Não há nada mais triste que ver seu marido com um filho morto nos braços”.
Não se trata aqui de generalizar. Nem de julgar os homens que traíram ou se separaram depois da doença ou da perda de um bebê. É preciso, apenas, apontar a importância de um espaço para tentar lidar com os conflitos e a dor. Esse é também o papel dos profissionais quando se olha para a saúde de uma forma mais ampla.
Numa conversa entre uma mãe e a equipe, ocorreu um episódio significativo. A mãe contava que o marido queria fazer sexo, e ela não tinha vontade, massacrada pelo cotidiano na UTI. Sentia-se ofendida pelo desejo do marido. Levou a questão até para o pastor de sua igreja. “Como é que pode?”, disse ela à equipe. “Não se preocupa. Não é só seu marido, são todos. Ouvimos muito isso aqui”, afirmou a pediatra. E a assistente social esclareceu: “São só maneiras diferentes de lidar com a dor. Para você e a maioria das mulheres, é preciso estar bem para transar. Para seu marido e a maioria dos homens, é preciso transar para ficar bem”. Era um momento terrível. Quando perceberam, estavam todas, inclusive a mãe, quase chorando. Desta vez, de tanto rir.

A dor do pai

Quando a família perde o bebê, o desafio da equipe de saúde é, ao mesmo tempo, ajudar no luto e garantir acesso aos exames que podem detectar as causas dos problemas. Informação qualificada é a melhor maneira de eliminar culpas imaginárias e de garantir que a próxima gestação, se houver, sofrerá um risco menor de repetição.
O grupo de cuidados paliativos faz uma reunião com os familiares depois de três meses da perda. Nela, os exames são discutidos com os médicos, e as dúvidas são eliminadas. O espaço também é usado para que os pais possam falar sobre suas dificuldades e ser encaminhados para tratamento psicológico ou algum outro tipo de assistência cuja necessidade seja detectada.
O empresário Antonio Bastos, de 46 anos, marcou a equipe pela presença. Sua filha viveu menos de três dias. Nesse tempo tão curto, mas intenso, Antonio foi um ótimo pai. “A dor para o pai é tão grande quanto para a mãe. Ou maior”, diz. “Porque nós, pais, não geramos. Então, me parece que perdemos mais. Minha mulher sentiu nossa filha se mexer dentro dela, mas eu só podia conversar com a barriga.”
Quando a menina morreu, Antonio pegou-a no colo. E a beijou muito. Olhava para o bebezinho com um amor tão profundo que ninguém será capaz de esquecer a cena. “Foi uma alegria poder tocar em minha filha. E uma tristeza saber que ela não vai viver com a gente”, diz ele. De mãos dadas com a mulher e o filho, Antonio rezou em torno do berço da UTI até que, 15 minutos depois, sua filha cessou suavemente de respirar.
Na reunião do luto, três meses depois, Antonio e sua mulher precisavam compreender. “Como o problema era na placenta, minha mulher ficava se perguntando se tinha feito algo errado”, diz ele. “Tirar todas as dúvidas foi muito importante para nós. Por saber que fizemos tudo certo, dá para seguir vivendo. Esquecer, jamais. Superar, sim.”

A fotografia

(...) A fotografia é uma prática cotidiana da neonatologia do Caism. No início, os pais ficam surpresos com a oferta de fotografar seus bebês. Depois, trazem sua própria câmera. “Incentivamos os pais a tirar fotos dos filhos. É uma forma de entender que é uma história. Alguns bebês poderão ver as fotos mais tarde, outros não”, diz a pediatra Jussara Souza. “Quando a história não continua, para os pais é uma lembrança desse filho que teve uma vida curta, mas ainda assim uma vida. Nunca tivemos nenhum pai arrependido de ter tirado uma foto. Só pais que se arrependeram por não ter essa lembrança.”
Quando as mães perdem um filho, costumam dizer: “Deus me tirou um filho”. Jussara responde: “Sim, mas antes de tirar ele deu”. Essa é a função da fotografia como registro. “As pessoas precisam lembrar que tiveram um bebê”, afirma Jussara. “Mesmo que seja por um período curto, elas foram pais e mães, cuidaram do seu filho, fizeram todo o possível. E há uma imagem desse amor.”
A foto de adeus mostra por que a morte deve ser tratada como parte da vida. “A morte de um filho é uma ferida. Ela dói. Se cuidarmos dela, vai virar uma cicatriz. Vai continuar lá, como lembrança do vivido, mas não vai mais doer”, diz Jussara. “Mas, se não tratarmos dela, vai se tornar uma ferida incurável, para sempre aberta. Quando não conseguimos curar o bebê, temos de cuidar da ferida. Não posso ser Deus, como me ensinaram na faculdade de medicina. Mas posso ser humana e cuidar.”
A fotografia é o final de uma história. Não a história sonhada, mas a possível. E o possível nunca é pouco.

Vida que segue
(...) Durante cinco meses esta foi uma cena corriqueira na enfermaria: Luciana Patrício com as mãos pousadas sobre seu bebê, prematuro e com complicações de saúde. Hoje, ela cuida de Marcela em casa.
Quando viu Marcela pela primeira vez, Luciana Patrício, de 35 anos, sentiu medo. “Ela era tão frágil, parecia que não ia aguentar”, diz. Moradores de Sorocaba, ela e o marido alugaram uma quitinete perto do hospital. E Luciana não saiu mais de perto da criança. A qualquer hora do dia, lá estava ela. Sempre com a mão sobre seu bebê. Pareciam carnalmente ligadas, ela e a filha. A mão substituindo o cordão umbilical, rompido de forma abrupta.
(...) Quando Marcela piorou, a equipe de cuidados paliativos conversou com Luciana. “Eu precisava decidir o que fazer se a situação dela se agravasse. Eles queriam saber se eu queria que entubasse, se queria que ela fosse reanimada”, diz. “Foi importante falar sobre isso. Se a situação piorasse, eu não queria que ela sofresse mais. Eu tinha uma ideia diferente dos cuidados paliativos. Achava que não investiriam mais na minha filha. Pelo contrário, continuaram fazendo tudo o que era preciso.”
Marcela começou a melhorar. Luciana passou para a próxima etapa. Dentro da unidade, há um apartamento onde as mães ficam com seus filhos perto de ter alta. Lá, começam a cuidar dos bebês sozinhas, mas, a qualquer aperto, podem pedir ajuda. É uma forma de adquirir segurança para um momento tão desejado, mas difícil. “Foi maravilhoso saber que ela iria para casa, mas também deu muito medo. Ela precisa de muitos cuidados”, diz Luciana. “É estranho, mas eu sinto saudade do hospital. Por muito tempo, a equipe foi meu pai, minha mãe, meu marido, meus amigos, minha família, tudo. Se eu não estivesse num lugar assim, teria enlouquecido.”

Tia Edna e os arco-íris

Tia Edna acha que os bebês têm uma natureza de arco-íris. Ela havia acabado de sair do trabalho, na Unicamp, quando apareceu um – lindo – no céu. Procurou sua câmera fotográfica. Nada. Havia esquecido no hospital. “Era único. Perdi. Nunca mais vi aquele arco-íris”, diz ela, ainda triste. Os bebês são assim. Únicos. E a cada momento diferentes. Uma mão na boca, uma carinha risonha. Se Tia Edna não se apressa, perde. Por isso, guarda a câmera em seu carrinho de enfermagem. E clica. Eterniza.
Edna Sueli Silva do Nascimento, de 49 anos, começou a fotografar há mais de duas décadas, em 1987, com a câmera da filha. Queria registrar sua história, já que passava mais tempo no hospital que em casa. Ela trabalhava na limpeza, mas adorava aquelas “coisinhas pequenas”. Foi estimulada a terminar o ensino médio e a fazer o curso de técnica em enfermagem. Fez. Há pelo menos uma década, Tia Edna é a encarregada de encontrar as veias quase invisíveis dos bebês e de consumar o impossível: espetá-las com delicadeza. Tia Edna diz às mães para pousar suas mãos sobre os filhos: “A quentura que elas passam acalma o bebê”. E espeta.
Esse é seu trabalho oficial. O outro não é menos importante. Tia Edna transformou a câmera fotográfica num objeto tão corriqueiro quanto uma seringa na neonatologia do Caism, da Unicamp. Por intuição de contadora de histórias, ela começou a fotografar o cotidiano da equipe, dos colegas distraídos às festas natalinas. E, claro, os bebês. Sempre com suas mães, pais, irmãos, para saber quem são. Hoje, a fotografia ocupa um lugar estratégico na promoção de saúde da unidade que trata de bebês graves, muitos prematuros ou com malformação.
Por que a foto é importante? Tia Edna responde: “A mãe quer tanto aquele filho. Mas às vezes há um probleminha. Pela foto, ela tem uma recordação de que foi mãe um dia. Mesmo que ele tenha nascido e morrido logo depois, ela teve o momento dela de ser mãe. Algumas pessoas dizem: ‘Ah, mas quem vai querer um bebê desse jeito?’. Ah, mas ela quer o bebê. Não importa como ele seja, ela quer o bebê. E esse momento é único. Então, eu tiro a foto dela com seu bebê. E ela tem uma lembrança para sempre”.
Num lugar onde tantos morrem tão cedo, Tia Edna captura momentos fugazes e os transforma em eternidade. Muitas vezes, não há como salvar a vida dos bebês. Mas, da forma como lhe é possível, Tia Edna salva sua história."

domingo, 24 de outubro de 2010

Maternidade Interrompida

Photo Credit: Mkchiodi
O livro Maternidade Interrompida: o drama da perda gestacional, escrito por Maria Manuela Pontes, reúne inúmeros relatos de mães que tiveram que se despedir de seus filhos antes mesmo de vê-los com vida. O livro contém histórias tão tristes quanto as de Áurea, mas transmite maior pesar. Mas além dos relatos das mães, traz também relatos de pais e de outros familiares. Se for lido aos poucos, dá uma grande idéia sobre o universo em que vivem imersas estas mães sem filhos. Vejo que o livro tem por objetivo mostrar a realidade das perdas. Confesso que nele encontrei companhia. São tantas mães com seus braços vazios, em número muito maior do que eu poderia imaginar, que penso na imensa corrente que poderiamos formar ao nos dar as mãos e juntas abraçarmos aos que necessitam.
Já no site da Associação Artemis, eu encontrei apoio e incentivo. Nesse site, Maria Manuela Pontes e sua equipe reunem conteúdos presentes no universo das mães que perderam seus bebês desde os primeiros dias de gestação. Nele se encontram depoimentos e artigos sobre perda gestacional, fertilidade, adoção, saúde, bem-estar, formando um conjunto valioso de informações com o objetivo de apoiar e encorajar mães e familiares. Vale a pena visitá-lo e explorar todo o seu conteúdo.

Publicações:
Pontes, Maria Manoela. Maternidade Interrompida: o drama da perda gestacional.
Pontes, Maria Manoela. Pacto de Silêncio: maternidades fugazes.

domingo, 17 de outubro de 2010

Pai-órfão

Photo Credit: Mwhea6am

Li no encarte Viver Bem, Jornal Gazeta do Povo de 04/04/2010, a matéria Renascidos escrita por Adriana Czelusniak e Fernanda Trisotto e gostei muito. Para celebrar a Páscoa, uma matéria que mostra a atitude de diferentes pessoas perante diferentes embates com a vida. A doença, a adversidade, a incompreensão, o abandono, a falência e o luto. O que todas estas pessoas têm em comum? Otimismo, trabalho, perseverança, superação. Apesar de aparentemente a vida dizer não a estas pessoas, para os seus sonhos e esperanças, elas permaneceram dizendo sim para a vida, e várias delas já foram recompensadas por ter continuado a lutar. Veja a seguir o depoimento de Júnior Gabardo, 46 anos, estilista que perdeu os pais e o único filho em um acidente automobilístico.
"(...) Fazia muito calor naquela manhã de sábado, então meus pais e meu filho de 3 anos resolveram ir à praia. Não havia passado uma hora da partida deles quando me ligaram avisando sobre um acidente na serra, com um caminhão e alguns carros. Depois do choque, e de muitas horas no IML - por causa da explosão, os corpos não podiam ser reconhecidos - me lembro de, na saída do cemitério, ter percebido que a partir dali estaria sozinho. Há um buraco na minha vida nos dias após o acidente. Alguns funcionários me disseram que eu fui trabalhar, mas eu não consigo me lembrar de nada, só que a mãe do meu filho me acolheu na casa dela por alguns dias. Eu morava com meus pais, pois minha mãe estava se recuperando de um câncer de mama, e quando resolvi voltar para casa a sensação foi muito estranha: não tinha mais cheiro de gente.
A razão pela qual você vive desaparece. E é um momento perigoso, pois você está fragilizado e se pergunta onde aquelas pessoas estão, o que há depois da vida. Quando fui ao encontro de Entreajuda, na Igreja dos Mercês, conheci a meditação e isso foi importante. Lá você percebe que há muitas pessoas com problemas como o seu, ou piores, e que tragédias acontecem todo dia e o mundo não vai parar por causa disso. Depois que eles se foram, comecei a perceber mais o sofrimento do outro e a ter compaixão. Hoje estou reconstruindo a minha vida. Continuo a trabalhar com moda, mas não correndo o tempo todo. Estou estudando e dando aulas, coisa que eu escolhi porque gosto. Sinto que um dia ainda vou conseguir ajudar a aplacar a dor de alguém. (...)" 

domingo, 10 de outubro de 2010

Olha só esta história...

Photo Credit: Beriliu

É inspiradora a força, a determinação e a coragem desta mulher na conquista de seu sonho: ser mãe. Sonho conquistado após uma longa trajetória, repleta de recomeços. Mas a maior lição é a possibilidade de ser feliz, viver e continuar amando, apesar do sofrimento.

"DEPOIS DE PERDER NOVE BEBÊS, EU VIREI MÃE DE DEZ FILHOS
 
Texto extraído da Revista Marie Claire, Edição n° 202 de Janeiro de 2008, da coluna EU, LEITORA, depoimento de Áurea da Silva à repórter Patrícia Cerqueira.

O sonho de Áurea da Silva era ter muitos filhos e a casa cheia de barulho. Conseguiu realizar seu desejo, não sem antes passar por muito sofrimento. Seus primeiros nove filhos morreram com poucos dias de vida. Eram todos meninos. Apesar de tantos desencontros com a felicidade, Áurea não desistiu da maternidade. Depois de adotar uma menina de 2 anos, ela engravidou de novo, de novo e de novo. Ao todo, foram nove. Hoje, ela sorri para a vida ao lado de seus dez filhos, 23 netos e oito bisnetos. Tenho uma coisa com o número nove e vou explicar o motivo. Sempre quis ser mãe de muitos filhos, desde menina. Na infância, pegava todas as minha bonecas e passava horas cuidando delas, mergulhada no meu mundo imaginário, que eu tinha certeza de que, um dia, se tornaria verdadeiro. E foi, só que meio às avessas. Perdi meus nove primeiros filhos. Uns nasceram de nove meses e morreram depois de dias. Outros foram prematuros e não resistiram. Mas a minha obsessão em ser mãe me levou a adotar uma menina e, em seguida, engravidar outras nove vezes. Hoje tenho uma família enorme, como no meu sonho de criança.
Não sei de onde veio esse meu desejo desenfreado pela maternidade. Talvez pelo fato de a minha família de origem ser razoavelmente pequena. Meus pais só tiveram três filhas, sou a caçula. Eu pedia a minha mãe mais uma irmã, mas ela sempre dizia: 'Não, criança dá muito trabalho'. E dá mesmo, só que é bom. Mas, na minha fantasia de menina, a vida seria diferente. Teria muitos filhos e seria feliz. Eu só precisava arrumar um companheiro que aceitasse o meu plano. Isso, sim, poderia ser trabalhoso!
Tinha 12 anos quando soube pelos meus pais que hospedaríamos em casa, durante alguns dias, um primo, filho do irmão da minha mãe, que eu não conhecia. Fiquei animada com a chance de ter mais uma companhia, só não esperava me apaixonar por ele -e, melhor, ser correspondida. José era seis anos mais velho, moreno claro, meio calado, com ar de tímido. Lindo! Gamei em silêncio porque assim mandava o costume e também porque ele era primo, da família. Só que José e eu nos demos muito bem, ficamos amigos.
Às vezes, saíamos para passear e sempre conversávamos bastante. Um dia, ele pegou na minha mão e, em seguida, me pediu em namoro. A vida, naquele tempo, era diferente, havia romantismo. José me escrevia poemas amorosos, e eu respondia com outros. Assim era o nosso namoro. Meus pais logo ficaram sabendo de nossa história e, por incrível que pareça, apoiaram o nosso caso. Em lugares pequenos, como onde eu cresci, relações entre primos são mais comuns do que se imagina. Ainda mais naquela época. Só que eu não tinha a menor idéia dos problemas que viriam pela frente.
Nosso namoro firmou, eu tinha certeza de que José era o homem da minha vida, e me sentia correspondida. Nós nos divertíamos e fazíamos planos mirabolantes, entre eles o de ter muitos filhos. José também gostava de criança e achava graça quando eu dizia que queria ter muitos filhos. Pelo menos dez! Ele nunca rejeitou o meu desejo, mas acho que não acreditava que seriam dez.
Seja como for, ele me levou a sério. Ao fazer 21 anos, me pediu em casamento. Eu só tinha 15! Ninguém se opôs. Naquele tempo, os pais não pensavam em outra coisa, a não ser casar suas filhas. Também perceberam que estávamos apaixonados e preferiram aceitar a criar caso. Não sei. Só sei que me casei de véu e grinalda, em uma cerimônia para 300 pessoas. A festa começou às 19h e foi até o dia seguinte. Eu estava radiante.
José e eu fomos morar em um sítio da família, no interior da Bahia. Ele precisava administrar os negócios de lá. Era um lugar lindo, cheio de verde e muito sol. Dois meses depois, recebi a primeira das notícias que mudariam a minha vida para sempre. Eu estava grávida! Tudo corria como eu tinha imaginado: um grande amor e uma gravidez tranqüila, sem enjôos nem desejos absurdos. José estava entusiasmado, achava que ia ser um menino por causa do formato pontudo da minha barriga -a gente não tinha como saber o sexo da criança, era na surpresa.
No dia 22 de setembro, dei à luz um menino que parecia a cara do pai. Parto normal, tudo certo. Durante 20 dias, vivi minha tão sonhada maternidade. Não tive depressão, cansaço, nada. Só que, no 21º dia de vida do meu filho, fui surpreendida pela morte prematura dele. O bebê começou a chorar, chorar, nada o acalmava. Dei o peito, acarinhei, ofereci chá, fiz massagem na barriga, não adiantava. Uma hora, ele ficou quietinho nos meus braços, achei que tinha dormido de cansaço, mas estava morto.
Foi um dos piores momentos que já vivi. Sacudi a criança na esperança de ela me responder com um choro, um gemido. Mas quem chorava era eu. Chorava de desespero, aflição, angústia. José chegou correndo em casa, mas não havia o que fazer. Só nos restava enterrar o menino. Fiquei arrasada e me sentindo culpada. O que eu teria feito de errado para carregar meu filho morto?
Eu não sabia até ali que primos podem gerar filhos com problemas de saúde. A parteira que me atendeu havia comentado que esse parentesco era perigoso e isso me atormentou durante anos. Por um lado, repensava o meu casamento com José. Por outro, eu o amava demais. Não via nenhuma saída.
Durante muito tempo, a imagem do meu filho deitado no caixão branco, estofado de tecido azul-claro e enfeitado com flores brancas martelou a minha cabeça. O pior é que passei por muitas outras situações iguais a essa -e, apesar disso, nunca me acostumei com a morte prematura.
Recebi muito apoio da família, especialmente de minha sogra. Ela dizia que eu era jovem e que ninguém pode mudar seu próprio destino. Verdade ou não, me sustentava nas palavras dela. Poucos meses depois, engravidei novamente. Fiquei feliz, claro, mas sentia medo de perder mais um bebê, até porque, a partir do sexto mês, tive cólicas intensas. Mesmo assim agüentei até o final. Só que meu segundo filho também morreu. Mais depressão, mais um pequeno caixão branco, mais um enterro.
Eu me sentia a pior mulher do mundo. Passei a acreditar que o problema era realmente o meu parentesco com José. Mas as explicações para as mortes eram outras: parada cardíaca e tétano umbilical. Nada a ver com a nossa consangüinidade. Mas essas respostas não me consolavam. Nem a José, que andava abatido e amargurado.
Meses depois do segundo enterro, engravidei de novo e mais uma vez perdi a criança. A terceira. Eu queria morrer, não agüentava mais me encher de esperança, sofrer as dores do parto e voltar para casa de mãos vazias. Ainda assim, engravidei outras seis vezes -e perdi todos. Cinco nasceram de nove meses e morreram dias depois. A partir da sexta gestação, fui tendo bebês cada vez mais prematuros, que não resistiram. Eram todos meninos, todos foram batizados e enterrados, um do lado do outro.
Dos 15 aos 23 anos, foram nove tentativas para me tornar mãe. Um verdadeiro pesadelo! Eu estava destruída física e emocionalmente. Na minha cabeça, eu não merecia ser mãe por ter me apaixonado perdidamente pelo meu primo. José também achava que era esse o problema, mas a gente não conseguia se separar, era amor mesmo o que sentíamos um pelo outro. Eu quase enlouqueci pensando sobre isso. Tanto homem no mundo e fui escolher justo um que não podia me dar filhos. José provavelmente pensava a mesma coisa sobre mim.
Mas ele sofria calado e ficava pior ao me ver naquele estado depressivo e deprimente, com os seios cheios de leite, chorando como uma louca, me sentindo um lixo. Eu via minhas amigas tendo seus filhos e, involuntariamente, sentia uma ponta de inveja. Não por elas ou suas crianças, mas por eu não ter sido capaz de fazer vingar a vida de um bebê. Estava exausta, não queria tentar outra gravidez, mas ainda não tinha perdido a esperança de me tornar mãe.
Por isso convenci José -e a mim mesma- a adotar uma menina de dois anos por quem me apaixonei, filha de uma moradora de rua. Anailde é o nome dela, conforme seu registro. Apesar da idade, ela não dava um passo sozinha e falava pouco. Acho que ela não era bem tratada. Assim que chegou em casa, eu a peguei no colo e a abracei. Sem exagero, foi o dia mais feliz da minha vida. Ana, como a chamo, precisava de muitos cuidados e teve todos.
Meses mais tarde, engravidei de novo. Estava com uma nova barriga e um medo monstruoso de perder mais uma criança. Foram nove meses de profunda angústia e, ao mesmo tempo, de felicidade. E se dessa vez desse tudo certo? Eu tinha uma ponta de esperança, mas estava tensa, tinha ansiedade, dormia mal e, quando dormia, sempre sonhava com um dos enterros. Era uma sensação estranha... Ficava feliz com a gravidez, mas, ao mesmo tempo, não conseguia me sentir bem. Era como se eu já estivesse preparada para o pior.
Mas nasceu mais um menino. Batizei no mesmo dia: José, como o pai. Os dias seguintes ao nascimento também foram de grande angústia. Ana não saía de perto de mim, e eu não desgrudava os olhos de José. A minha sorte foi que ele era tranqüilo, dessas crianças que mamam e dormem bastante. Parecia saudável, mas os outros também, eu pensava. Por seis meses inteiros, vivi em total estado de alerta.
José, o filho, não podia chorar que eu corria até o berço, se dormia demais eu já ia ver se estava respirando, se dormia no peito eu o acordava. Sair de casa, nem pensar. Eu estava totalmente dedicada ao menino e a Ana. Coitados! Atormentei demais essas crianças.
Ter a certeza de que ele sobreviveria foi a maior alegria da minha vida. Nem eu nem José acreditávamos que uma criança nascida da minha barriga iria crescer do nosso lado. Eu parecia uma tonta de tanto orgulho que tinha de ser mãe de um casal. Pegava Ana e José e saía pela cidade só para me exibir para os outros. Era como se eu dissesse: 'Olha só as minhas crianças'. Para mim, não havia meninos mais bonitos e espertos que os meus.
Eu ainda estava amamentando José quando recebi a notícia de mais uma gravidez. Dessa vez, veio Maria Rosa. O tempo foi passando, José começou a andar, Maria Rosa, a engatinhar, e só então Ana, com 5 anos, deu seus primeiros passos. Fiquei aliviada porque se comprovou que ela não tinha nenhum problema físico. Não andava porque precisava de 'colo'. Também já falava bastante. Aliás, ela é hoje a mais tagarela de todos os meus filhos.
José e eu nos dávamos muito bem. Assim, novas gestações aconteceram. Ao todo, foram nove. Tinha nascimento todo ano. A minha última filha nasceu quando eu estava com 41 anos. Ana, a mais velha, tem 50 anos, e a caçula, 30.
A cada notícia de gravidez, era sempre uma apreensão. Eu morria de medo de perder outro filho. Na verdade, o fantasma da morte nunca me deixou em paz. Engraçado que eu mesma, agora com 70 anos, não tenho medo de morrer. Sei que ninguém escapa desse momento, mas nunca me ocupei desse assunto.
Por causa de tantas perdas, me tornei uma mãe mais do que superprotetora. Sempre tive um cuidado absurdo com eles, não deixava que saíssem muito tempo de perto de mim. Também me culpava pelas coisas que aconteciam com eles. Uma vez, José caiu e machucou feio o rosto. Levou ponto e tudo. A culpada, claro, era eu! Não tinha olhado o menino direito. Se alguém pegava um resfriado, eu é que tinha descuidado do cobertor.
Em 1978, mudamos de vida. Vendemos o sítio, a casa e a plantação e viemos morar em São Paulo, onde José abriu seu negócio de marcenaria. Demorei a me acostumar com a cidade e isso acabou me deixando ainda mais cuidadosa com os meus filhos. Mas eles cresceram e fizeram suas vidas. Todos casaram, têm filhos -tenho 23 netos e 8 bisnetos- e trabalham. Só uma de minhas filhas, a quinta, seguiu o meu caminho. Ela sempre se pareceu demais comigo. Desde pequena dizia que, quando crescesse, ia ser mãe. Teve dez filhos, dois morreram recém-nascidos. Essas perdas mexeram comigo. Fiquei triste e, de certa maneira, revivi meu passado.
Os outros têm famílias mais comuns, de dois, três filhos. Falo com os nove todos os dias, por telefone, à noite. Se não consigo falar com um, não sossego. Quero saber se estão bem, como passaram o dia, essas coisas. E domingos e feriados almoçamos juntos. É difícil reunir todo mundo sempre, mas a gente se esforça. Tenho certeza de que meus filhos, netos e bisnetos gostam da minha companhia.
Olhando para trás, não sei como dei conta de colocar os nove em um bom caminho. O único senão da minha história é que não fiz uma carreira, acabei cuidando da família. Não recrimino quem deixa os filhos para trabalhar. Mas no meu caso decidi que eu ia ser mãe em período integral. José aceitou sem se queixar.
Há cinco anos, ele morreu. Teve um derrame fulminante. Mais uma vez não tive tempo de preparar o coração! Nossos filhos já estavam crescidos, e eu tive que aprender a viver sozinha. Engraçado isso. Vivi tantos anos com tanta gente em casa e, de repente, me vi assim, eu comigo mesma. Não foi fácil encarar essa realidade, mas tento não me apegar às tristezas.
Penso sempre no meu casamento, que foi uma maravilha, e em José como um grande companheiro. Realmente não posso reclamar de nada. Se sou feliz? Claro que sou. Quantas pessoas conseguem realizar seus sonhos? Tenho um orgulho imenso da família que criei, tenho prazer em ver meus filhos, conversar com eles e me divertir com os meus netos e bisnetos. Os mais velhos já trazem suas namoradas para me conhecer. Não é o máximo? Isso é vida!"

domingo, 3 de outubro de 2010

Só comigo?

Photo Credit: Raven3k

Já contei minha história muitas vezes, e nestas ocasiões, conheci várias outras. E cada nova história foi despertando a solidariedade e diminuindo a solidão. Conhecer outras experiências não reduziu a dor, mas permitiu que eu aprendesse a lidar melhor com ela. Tomei a liberdade de contá-las, resumidamente, pois considero que estas histórias se incorporaram a minha.
Começo pelas mulheres que lutam para ter seus filhos e se submetem a inúmeros tratamentos, na expectativa de alcançarem o sonho de ser mãe, entretanto, sem nenhuma garantia de sucesso, algumas conseguem e outras não. Outras ao mesmo tempo em que vencem um câncer perdem a possibilidade de gerar um filho. Algumas mulheres nem tem a chance de conhecer seus filhos vivos, e se vêem obrigadas a dar a luz um bebê sem vida. Outras vivenciam sucessivos abortos sem encontrar uma razão clínica para isto. Apesar de toda a dedicação mulheres perdem seus filhos depois de dias de seu nascimento. Outras criam seus filhos com as seqüelas da ausência de oxigenação do cérebro. Mulheres com gestação múltipla perdem um de seus filhos, ou todos.  E ainda tem aquelas que encontram seus filhos sem vida, no berço. Outras não tem a chance de chamá-los pelo nome (os outros o chamam apenas por feto, como se não fossem nada), como se já não fossem amados. Algumas mulheres tem seus filhos roubados. Outras vêem seus filhos serem consumidos pela doença, sem nada a fazer. Todo dia mulheres vêem seus filhos partirem por causa da violência, das drogas, do trânsito, do crime. Em alguns casos elas passam por estas experiências sozinhas, sem um companheiro para dividir o sofrimento. E cada uma delas com a sua dor, com a sua falta de ar, com a sua falta de tudo. Anônimas e famosas, ricas e pobres, independente de raça e religião, todas compartilham a dor da perda. Essas mulheres só contam suas histórias com o objetivo de tentar aplacar o sofrimento de outras. Não são histórias fáceis de contar, mas por um momento a sua própria dor fica de lado.