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Photo Credit: Beriliu |
É inspiradora a força, a determinação e a coragem desta mulher na conquista de seu sonho: ser mãe. Sonho conquistado após uma longa trajetória, repleta de recomeços. Mas a maior lição é a possibilidade de ser feliz, viver e continuar amando, apesar do sofrimento.
"DEPOIS DE PERDER NOVE BEBÊS, EU VIREI MÃE DE DEZ FILHOS
Texto extraído da Revista Marie Claire, Edição n° 202 de Janeiro de
2008, da coluna EU, LEITORA, depoimento de Áurea da Silva à repórter
Patrícia Cerqueira.
O sonho de Áurea da Silva era ter muitos filhos e a casa
cheia de barulho. Conseguiu realizar seu desejo, não sem antes passar
por muito sofrimento. Seus primeiros nove filhos morreram com poucos
dias de vida. Eram todos meninos. Apesar de tantos desencontros com a
felicidade, Áurea não desistiu da maternidade. Depois de adotar uma
menina de 2 anos, ela engravidou de novo, de novo e de novo. Ao todo,
foram nove. Hoje, ela sorri para a vida ao lado de seus dez filhos, 23
netos e oito bisnetos. Tenho uma coisa com o número nove e vou explicar o motivo. Sempre
quis ser mãe de muitos filhos, desde menina. Na infância, pegava todas
as minha bonecas e passava horas cuidando delas, mergulhada no meu mundo
imaginário, que eu tinha certeza de que, um dia, se tornaria
verdadeiro. E foi, só que meio às avessas. Perdi meus nove primeiros
filhos. Uns nasceram de nove meses e morreram depois de dias. Outros
foram prematuros e não resistiram. Mas a minha obsessão em ser mãe me
levou a adotar uma menina e, em seguida, engravidar outras nove vezes.
Hoje tenho uma família enorme, como no meu sonho de criança.
Não sei de onde veio esse meu desejo desenfreado pela maternidade.
Talvez pelo fato de a minha família de origem ser razoavelmente pequena.
Meus pais só tiveram três filhas, sou a caçula. Eu pedia a minha mãe
mais uma irmã, mas ela sempre dizia: 'Não, criança dá muito trabalho'. E
dá mesmo, só que é bom. Mas, na minha fantasia de menina, a vida seria
diferente. Teria muitos filhos e seria feliz. Eu só precisava arrumar um
companheiro que aceitasse o meu plano. Isso, sim, poderia ser
trabalhoso!
Tinha 12 anos quando soube pelos meus pais que hospedaríamos em casa,
durante alguns dias, um primo, filho do irmão da minha mãe, que eu não
conhecia. Fiquei animada com a chance de ter mais uma companhia, só não
esperava me apaixonar por ele -e, melhor, ser correspondida. José era
seis anos mais velho, moreno claro, meio calado, com ar de tímido.
Lindo! Gamei em silêncio porque assim mandava o costume e também porque
ele era primo, da família. Só que José e eu nos demos muito bem, ficamos
amigos.
Às vezes, saíamos para passear e sempre conversávamos bastante. Um
dia, ele pegou na minha mão e, em seguida, me pediu em namoro. A vida,
naquele tempo, era diferente, havia romantismo. José me escrevia poemas
amorosos, e eu respondia com outros. Assim era o nosso namoro. Meus pais
logo ficaram sabendo de nossa história e, por incrível que pareça,
apoiaram o nosso caso. Em lugares pequenos, como onde eu cresci,
relações entre primos são mais comuns do que se imagina. Ainda mais
naquela época. Só que eu não tinha a menor idéia dos problemas que
viriam pela frente.
Nosso namoro firmou, eu tinha certeza de que José era o homem da
minha vida, e me sentia correspondida. Nós nos divertíamos e fazíamos
planos mirabolantes, entre eles o de ter muitos filhos. José também
gostava de criança e achava graça quando eu dizia que queria ter muitos
filhos. Pelo menos dez! Ele nunca rejeitou o meu desejo, mas acho que
não acreditava que seriam dez.
Seja como for, ele me levou a sério. Ao fazer 21 anos, me pediu em
casamento. Eu só tinha 15! Ninguém se opôs. Naquele tempo, os pais não
pensavam em outra coisa, a não ser casar suas filhas. Também perceberam
que estávamos apaixonados e preferiram aceitar a criar caso. Não sei. Só
sei que me casei de véu e grinalda, em uma cerimônia para 300 pessoas. A
festa começou às 19h e foi até o dia seguinte. Eu estava radiante.
José e eu fomos morar em um sítio da família, no interior da Bahia.
Ele precisava administrar os negócios de lá. Era um lugar lindo, cheio
de verde e muito sol. Dois meses depois, recebi a primeira das notícias
que mudariam a minha vida para sempre. Eu estava grávida! Tudo corria
como eu tinha imaginado: um grande amor e uma gravidez tranqüila, sem
enjôos nem desejos absurdos. José estava entusiasmado, achava que ia ser
um menino por causa do formato pontudo da minha barriga -a gente não
tinha como saber o sexo da criança, era na surpresa.
No dia 22 de setembro, dei à luz um menino que parecia a cara do pai.
Parto normal, tudo certo. Durante 20 dias, vivi minha tão sonhada
maternidade. Não tive depressão, cansaço, nada. Só que, no 21º dia de
vida do meu filho, fui surpreendida pela morte prematura dele. O bebê
começou a chorar, chorar, nada o acalmava. Dei o peito, acarinhei,
ofereci chá, fiz massagem na barriga, não adiantava. Uma hora, ele ficou
quietinho nos meus braços, achei que tinha dormido de cansaço, mas
estava morto.
Foi um dos piores momentos que já vivi. Sacudi a criança na esperança
de ela me responder com um choro, um gemido. Mas quem chorava era eu.
Chorava de desespero, aflição, angústia. José chegou correndo em casa,
mas não havia o que fazer. Só nos restava enterrar o menino. Fiquei
arrasada e me sentindo culpada. O que eu teria feito de errado para
carregar meu filho morto?
Eu não sabia até ali que primos podem gerar filhos com problemas de
saúde. A parteira que me atendeu havia comentado que esse parentesco era
perigoso e isso me atormentou durante anos. Por um lado, repensava o
meu casamento com José. Por outro, eu o amava demais. Não via nenhuma
saída.
Durante muito tempo, a imagem do meu filho deitado no caixão branco,
estofado de tecido azul-claro e enfeitado com flores brancas martelou a
minha cabeça. O pior é que passei por muitas outras situações iguais a
essa -e, apesar disso, nunca me acostumei com a morte prematura.
Recebi muito apoio da família, especialmente de minha sogra. Ela
dizia que eu era jovem e que ninguém pode mudar seu próprio destino.
Verdade ou não, me sustentava nas palavras dela. Poucos meses depois,
engravidei novamente. Fiquei feliz, claro, mas sentia medo de perder
mais um bebê, até porque, a partir do sexto mês, tive cólicas intensas.
Mesmo assim agüentei até o final. Só que meu segundo filho também
morreu. Mais depressão, mais um pequeno caixão branco, mais um enterro.
Eu me sentia a pior mulher do mundo. Passei a acreditar que o
problema era realmente o meu parentesco com José. Mas as explicações
para as mortes eram outras: parada cardíaca e tétano umbilical. Nada a
ver com a nossa consangüinidade. Mas essas respostas não me consolavam.
Nem a José, que andava abatido e amargurado.
Meses depois do segundo enterro, engravidei de novo e mais uma vez
perdi a criança. A terceira. Eu queria morrer, não agüentava mais me
encher de esperança, sofrer as dores do parto e voltar para casa de mãos
vazias. Ainda assim, engravidei outras seis vezes -e perdi todos. Cinco
nasceram de nove meses e morreram dias depois. A partir da sexta
gestação, fui tendo bebês cada vez mais prematuros, que não resistiram.
Eram todos meninos, todos foram batizados e enterrados, um do lado do
outro.
Dos 15 aos 23 anos, foram nove tentativas para me tornar mãe. Um
verdadeiro pesadelo! Eu estava destruída física e emocionalmente. Na
minha cabeça, eu não merecia ser mãe por ter me apaixonado perdidamente
pelo meu primo. José também achava que era esse o problema, mas a gente
não conseguia se separar, era amor mesmo o que sentíamos um pelo outro.
Eu quase enlouqueci pensando sobre isso. Tanto homem no mundo e fui
escolher justo um que não podia me dar filhos. José provavelmente
pensava a mesma coisa sobre mim.
Mas ele sofria calado e ficava pior ao me ver naquele estado
depressivo e deprimente, com os seios cheios de leite, chorando como uma
louca, me sentindo um lixo. Eu via minhas amigas tendo seus filhos e,
involuntariamente, sentia uma ponta de inveja. Não por elas ou suas
crianças, mas por eu não ter sido capaz de fazer vingar a vida de um
bebê. Estava exausta, não queria tentar outra gravidez, mas ainda não
tinha perdido a esperança de me tornar mãe.
Por isso convenci José -e a mim mesma- a adotar uma menina de dois
anos por quem me apaixonei, filha de uma moradora de rua. Anailde é o
nome dela, conforme seu registro. Apesar da idade, ela não dava um passo
sozinha e falava pouco. Acho que ela não era bem tratada. Assim que
chegou em casa, eu a peguei no colo e a abracei. Sem exagero, foi o dia
mais feliz da minha vida. Ana, como a chamo, precisava de muitos
cuidados e teve todos.
Meses mais tarde, engravidei de novo. Estava com uma nova barriga e
um medo monstruoso de perder mais uma criança. Foram nove meses de
profunda angústia e, ao mesmo tempo, de felicidade. E se dessa vez desse
tudo certo? Eu tinha uma ponta de esperança, mas estava tensa, tinha
ansiedade, dormia mal e, quando dormia, sempre sonhava com um dos
enterros. Era uma sensação estranha... Ficava feliz com a gravidez, mas,
ao mesmo tempo, não conseguia me sentir bem. Era como se eu já
estivesse preparada para o pior.
Mas nasceu mais um menino. Batizei no mesmo dia: José, como o pai. Os
dias seguintes ao nascimento também foram de grande angústia. Ana não
saía de perto de mim, e eu não desgrudava os olhos de José. A minha
sorte foi que ele era tranqüilo, dessas crianças que mamam e dormem
bastante. Parecia saudável, mas os outros também, eu pensava. Por seis
meses inteiros, vivi em total estado de alerta.
José, o filho, não podia chorar que eu corria até o berço, se dormia
demais eu já ia ver se estava respirando, se dormia no peito eu o
acordava. Sair de casa, nem pensar. Eu estava totalmente dedicada ao
menino e a Ana. Coitados! Atormentei demais essas crianças.
Ter a certeza de que ele sobreviveria foi a maior alegria da minha
vida. Nem eu nem José acreditávamos que uma criança nascida da minha
barriga iria crescer do nosso lado. Eu parecia uma tonta de tanto
orgulho que tinha de ser mãe de um casal. Pegava Ana e José e saía pela
cidade só para me exibir para os outros. Era como se eu dissesse: 'Olha
só as minhas crianças'. Para mim, não havia meninos mais bonitos e
espertos que os meus.
Eu ainda estava amamentando José quando recebi a notícia de mais uma
gravidez. Dessa vez, veio Maria Rosa. O tempo foi passando, José começou
a andar, Maria Rosa, a engatinhar, e só então Ana, com 5 anos, deu seus
primeiros passos. Fiquei aliviada porque se comprovou que ela não tinha
nenhum problema físico. Não andava porque precisava de 'colo'. Também
já falava bastante. Aliás, ela é hoje a mais tagarela de todos os meus
filhos.
José e eu nos dávamos muito bem. Assim, novas gestações aconteceram.
Ao todo, foram nove. Tinha nascimento todo ano. A minha última filha
nasceu quando eu estava com 41 anos. Ana, a mais velha, tem 50 anos, e a
caçula, 30.
A cada notícia de gravidez, era sempre uma apreensão. Eu morria de
medo de perder outro filho. Na verdade, o fantasma da morte nunca me
deixou em paz. Engraçado que eu mesma, agora com 70 anos, não tenho medo
de morrer. Sei que ninguém escapa desse momento, mas nunca me ocupei
desse assunto.
Por causa de tantas perdas, me tornei uma mãe mais do que
superprotetora. Sempre tive um cuidado absurdo com eles, não deixava que
saíssem muito tempo de perto de mim. Também me culpava pelas coisas que
aconteciam com eles. Uma vez, José caiu e machucou feio o rosto. Levou
ponto e tudo. A culpada, claro, era eu! Não tinha olhado o menino
direito. Se alguém pegava um resfriado, eu é que tinha descuidado do
cobertor.
Em 1978, mudamos de vida. Vendemos o sítio, a casa e a plantação e
viemos morar em São Paulo, onde José abriu seu negócio de marcenaria.
Demorei a me acostumar com a cidade e isso acabou me deixando ainda mais
cuidadosa com os meus filhos. Mas eles cresceram e fizeram suas vidas.
Todos casaram, têm filhos -tenho 23 netos e 8 bisnetos- e trabalham. Só
uma de minhas filhas, a quinta, seguiu o meu caminho. Ela sempre se
pareceu demais comigo. Desde pequena dizia que, quando crescesse, ia ser
mãe. Teve dez filhos, dois morreram recém-nascidos. Essas perdas
mexeram comigo. Fiquei triste e, de certa maneira, revivi meu passado.
Os outros têm famílias mais comuns, de dois, três filhos. Falo com os
nove todos os dias, por telefone, à noite. Se não consigo falar com um,
não sossego. Quero saber se estão bem, como passaram o dia, essas
coisas. E domingos e feriados almoçamos juntos. É difícil reunir todo
mundo sempre, mas a gente se esforça. Tenho certeza de que meus filhos,
netos e bisnetos gostam da minha companhia.
Olhando para trás, não sei como dei conta de colocar os nove em um
bom caminho. O único senão da minha história é que não fiz uma carreira,
acabei cuidando da família. Não recrimino quem deixa os filhos para
trabalhar. Mas no meu caso decidi que eu ia ser mãe em período integral.
José aceitou sem se queixar.
Há cinco anos, ele morreu. Teve um derrame fulminante. Mais uma vez
não tive tempo de preparar o coração! Nossos filhos já estavam
crescidos, e eu tive que aprender a viver sozinha. Engraçado isso. Vivi
tantos anos com tanta gente em casa e, de repente, me vi assim, eu
comigo mesma. Não foi fácil encarar essa realidade, mas tento não me
apegar às tristezas.
Penso sempre no meu casamento, que foi uma maravilha, e em José como
um grande companheiro. Realmente não posso reclamar de nada. Se sou
feliz? Claro que sou. Quantas pessoas conseguem realizar seus sonhos?
Tenho um orgulho imenso da família que criei, tenho prazer em ver meus
filhos, conversar com eles e me divertir com os meus netos e bisnetos.
Os mais velhos já trazem suas namoradas para me conhecer. Não é o
máximo? Isso é vida!"
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