domingo, 15 de agosto de 2010

E agora?

Photo Credit Dan Queiroz

Saí do hospital, voltei para casa, o armário vazio. O olhar vazio. Quando se tem uma irmã como a minha é difícil não rir da própria desgraça. Ela até fez piadinha com a faixa que comprimia os meus seios para que o leite secasse: - Esta é uma faixinha a prova de balas, disse ela, em um de seus inúmeros momentos de irreverência. Só me restava rir. Nos dias seguintes, recebi telefonemas de amigos que só sabiam que Guilherme havia nascido, o e-mail semanal do site do Bebê, me informando sobre como estaria o desenvolvimento do bebê na trigésima semana de gestação. Os contatos dos amigos que não sabiam de nada, e perguntavam: - E aí, como está o barrigão? Os telefonemas daqueles que sabiam de tudo o que havia acontecido e queriam nos consolar. Sem contar os atos falhos, como o meu marido responder a um pedido meu com a seguinte frase: - Isso só podia ser coisa de grávida... E a sensação de acordar pela manhã e achar que tudo não havia passado de um pesadelo. Mas havia pela frente quatro longos meses, que pra mim mais pareciam uma eternidade, do que a licença maternidade, até que eu pudesse retornar ao trabalho. Eu perguntei a minha Médica se esse tempo era necessário, ao que ela respondeu afirmativamente. E logo percebi a importância deste período para que eu pudesse iniciar a minha recuperação tanto física quanto psicológica. Neste período senti necessidade de vasculhar o passado para verificar se eu não havia feito algo errado para causar o sofrimento do Guilherme durante a gestação e causado o parto prematuro. Pensei em tudo que havia feito, bebido, comido, pensado, falado... Se havia feito tudo que a Médica pediu, se não havia exagerado nos exercícios. E fazia isto o tempo todo. Senti necessidade de isolamento. Não tinha muita vontade de sair e visitar as pessoas, com o tempo este sentimento foi se dissipando. Senti dificuldade de concentração e falhas de memória. Tive muita dificuldade para ler, tinha que reler duas ou três vezes um mesmo parágrafo para compreender. Também experimentei pequenos lapsos de memória referentes a coisas do meu cotidiano profissional como simples formulas matemáticas. Senti tristeza, incompreensão, solidão e uma incrível sensação de estar no lugar errado, na hora errada. Senti vontade de que tudo não tivesse passado de um pesadelo. Entretanto, o que eu mais queria é que tudo voltasse ao normal. Mas eu perdi as referências sobre o que é a normalidade. Pois normal seria a continuidade da gravidez, e não a sua interrupção. Quem é que gosta de ser mais uma ocorrência nas análises estatísticas? A sensação de estar no lugar errado, na hora errada é constante. O sentimento de inadequação, a procura pelo erro, a procura pelo motivo, eram inevitáveis. Mesmo que eu pudesse culpar alguém pela morte do Guilherme, não seria suficiente. A sensação é de que se está num pesadelo angustiante, que se espera que acabe logo, mas ele não acaba. Com o tempo eu acabei aprendendo a conviver com este pesadelo. Sentia que para as pessoas a minha volta tudo já estava bem, que todos já haviam esquecido  o que aconteceu e que eles acreditavam que eu me sentia da mesma forma. Mas não, às vezes um pequeno detalhe, era capaz de me fazer reviver tudo novamente. Só que eu sabia que ficar envolvida nestes sentimentos não era saudável pro Guilherme (1), pra mim e pra minha família. Então apesar de conviver com estes sentimentos não podia me entregar a eles, e por isto tentei aproveitar este período para cuidar da saúde. Também ocorreram coisas boas, como os cafés da manhã com a minha vizinha Malu, a companhia das minhas irmãs, as Olimpíadas de Pequim. Os telefonemas daqueles que se preocupavam em conversar comigo sobre coisas do cotidiano ao invés de dar conselhos ou opiniões. Logo que foi possível voltei a caminhar pela vizinhança. Me matriculei em um curso de pintura decorativa em caixas de madeira. Ganhei a companhia da Jolie (meu cãozinho da guarda) e fiz novos amigos como a Luisa e o Gabriel. Consultei com outros médicos e fiz uma série de exames. Dei início a minha terapia. E como já contei, comecei a escrever meu diário.

NOTAS

“(...) Na verdade, toda perda gera luto. É natural um período de sofrimento, mas a persistência no estado de desânimo deve merecer atenção (...). Processos de perda implicam em dor, cuja intensidade e duração vão depender do investimento que o indivíduo faça ou tenha feito relativamente ao que tenha perdido.
A duração do período de luto por morte ou desencarnação de uma pessoa querida varia de um para outro indivíduo, mas os pesquisadores dessa área identificam o horizonte de um ano. Embora esse período não seja regra geral, ele se constituiu no tempo de que teoricamente a pessoa atravessa datas emocionalmente significativas, marcantes, como o primeiro aniversário, o primeiro Natal, a primeira Páscoa, e assim por diante, sem a presença da pessoa que partiu. (...)”

Trecho de citação contida no livro digital Anjos - Somos todos candidatos, escrito e compilado por Anabela Sabino, a partir de aprofundado estudo de inúmeras obras da Doutrina Espírita, no caítulo dedicado ao tema morte, onde estão reunidos inúmeros textos úteis para a compreensão deste fenômeno.

(1) “(...) Mães, sabei que vossos filhos bem-amados estão perto de vós; sim, estão muito perto; seus corpos fluídicos vos envolvem, seus pensamentos vos protegem, a lembrança que deles guardais os transporta de alegria, mas também as vossas dores desarrazoadas os afligem, porque denotam falta de fé e exprimem uma revolta contra a vontade de Deus. (...)”

Trecho extraído do livro O Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap. V –Bem aventurados os aflitos -  Perda de pessoas amadas. Mortes prematuras.

Questão n° 936 de O Livro dos Espíritos, Como as dores inconsoláveis dos encarnados afetam os Espíritos que partiram?
– O Espírito é sensível à lembrança e aos lamentos daqueles que amou, mas uma dor incessante e irracional o afeta dolorosamente, porque vê nessa dor excessiva uma falta de fé no futuro e de confiança em Deus e um obstáculo ao adiantamento dos que choram e, talvez, ao reencontro entre todos.
Estando o Espírito mais feliz no espaço do que na Terra, lamentar que tenha deixado esta vida é lamentar que seja feliz. Dois amigos são prisioneiros e estão encerrados na mesma cela; tanto um quanto o outro devem obter um dia a liberdade, mas um deles a obtém antes. Seria caridoso, para aquele que fica, sentir-se infeliz por seu amigo ter sido libertado antes dele? Não seria mais egoísmo do que afeição de sua parte querer que o outro compartilhasse do seu cativeiro e sofrimentos por tanto tempo quanto ele? O mesmo acontece com dois seres que se amam na Terra; aquele que parte primeiro é o primeiro a se libertar, e nós devemos felicitá-lo por isso, aguardando com paciência o momento em que lá estaremos por nossa vez.
Faremos, sobre este assunto, uma outra comparação. Tendes um amigo numa situação muito lastimável, sua saúde ou seu interesse exige que vá a um outro país onde ficará melhor sob todos os aspectos. Não estará mais perto de vós momentaneamente, mas sempre estareis em comunicação com ele: a separação será apenas material. Ficaríeis descontentes com seu afastamento, ainda que seja para seu bem?
Pelas provas evidentes que apresenta da vida futura, da presença ao nosso redor daqueles que amamos e da continuidade de sua afeição e dedicação por nós, pelas relações que nos permitem ter com eles, a Doutrina Espírita nos oferece uma suprema consolação para uma das causas mais legítimas da dor. Com o Espiritismo não há mais solidão, não há mais abandono; o homem mais isolado tem sempre amigos perto de si com os quais pode se comunicar.
Suportamos impacientemente as aflições da vida, e elas nos parecem tão intoleráveis que julgamos não poder suportá-las; entretanto, se as suportarmos com coragem, se soubermos silenciar nossos lamentos, ficaremos felizes com isso quando estivermos fora desta prisão terrestre, como o paciente que sofre fica feliz quando é curado, por ter se submetido a um tratamento doloroso.

Trecho extraído de O Livro dos Espíritos, questões nº 934 a 936, Parte IV, Cap. 1 - Penalidades e prazeres terenos. Perda de pessoas amadas.

Trenho da entrevista feita a Regina de Agostini que ministrou a palestra Perda de Entes Queridos:

"(...) Pergunta nº 08: Como podemos nos relacionar com os entes queridos que se foram sem causar-lhes perturbações?
Com lembranças amorosas, sem revolta, buscando lembrar daqueles a quem amamos nos momentos de alegria, de pacificação. A lembrança significa que existe amor e o amor jamais prejudicou ou desequilibrou a alguém.

Pergunta nº 09: Podemos prejudicar aquele que desencarnou pela dor da perda, desequilibrando-o?
O pensamento mórbido, a revolta, a inconformação, a idéia fixa são as formas que poderiam prejudicar e desequilibrar o desencarnado. Não estamos proibidos de sentir a dor da perda, que é real, que dói. Não estamos proibidos de chorar a perda de um familiar, de um pai, de uma mãe, de um filho. Na vasta literatura espírita sobre o assunto, nas mensagens recebidas mediunicamente daqueles que desencarnaram é comum estes rogarem a nós que aqui ficamos a paciência, a resignação e a conformação e que busquemos aliviar a nossa dor para que ela possa se transformar num sentimento que edifica. Não permitamos que a saudade se converta em motivo de angústia e opressão, pois estes sentimentos são os que prejudicam a aquele que desencarnou. (...)"

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